Pires Vieira - s/t, 1970 esmalte acrílico s/ madeira |
Pires Vieira: a pintura como estrutura
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
Uma das pequenas tragédias da arte portuguesa contemporânea é a sua inexistência, ou melhor, é o desaparecimento que a atinge, fruto do isolamento público, da ignorância, da irresponsabilidade institucional e das fraquezas próprias dos artistas que só raramente resistem a tamanha indiferença. Num sentido quase absoluto poderíamos afirmar que as historietas escritas sobre a arte produzida neste século e neste país são falsas, como falsos são os pseudo museus delas decorrentes. Reina em tal desordem uma ordem essencialmente suspeita.
A invisibilidade
museológica de autores, tendências, percursos e momentos marcantes da
prática artística é um dos aspectos da ordem referida, e dele decorrem
as afirmações repetidas de orfandade por parte dos artistas portugueses
sempre que são interrogados sobre a origem das suas formas e convicções
estéticas. Na realidade, nenhum jovem criador poderá, por exemplo,
entregar-se aos problemas da pintura decorrentes do movimento em
direcção à abstracção, instaurado por Cézanne, sem ver como foram
abordados ao longo dos últimos cem anos, ou sem saber em que estado se
encontram no momento em que decide intervir. E como para tal precisará
de encontrar as provas dessa evolução histórica e crítica da pintura,
isto é, das obras, dos museus e dos estudos que dêem a conhecer o
movimento das representações e das ideias artísticas, poderemos imaginar
as dificuldades que esperam qualquer pintor português. Resulta pois
difícil crer numa arte condenada a nascer eternamente do nada.
Serve
este preâmbulo para convocar uma obra afirmada durante a década de 70 e
que, como algumas outras, anda mal parada na historiografia artística
que temos, e pior representada nas colecções institucionais que vão
sendo dadas a conhecer publicamente. Refiro-me à pintura de Pires
Vieira.
Quando nos deparamos com os mais recentes trabalhos deste artista, poucos saberão de ondem efectivamente vêm; se têm algo que ver com algum passado recente da abstracção, ou se é coisa inopinada e passageira. Não percebemos se estamos na presença de um autor isolado, ou se é possível (e desejável) compará-lo com outros artistas, tais como Jorge Pinheiro, Palolo e sobretudo Ângelo de Sousa. Na impossibilidade de pensar nas filiações internas, resta-nos procurar as influências externas: os "support-surfaces", teorizados por Marcelin Pleynet, a pintura de Rothko e de Ad Reinhardt, ou mais recentemente, autores como Brice Marden e Alan McCollum. Haverá uma solução de continuidade entre a sua pintura processual/desconstrutiva realizada entre 1973-75 e a sua pintura mais recente, na qual predomina a vontade de reduzir o plano pictural à inscrição de uma "gestalt", ou seja, a usar a pintura como um espaço neutro onde determinadas formas icónicas aparecem pictoricamente e portanto visivelmente desenhadas, pintadas e coloridas?
Num certo sentido podemos dizer que sim.
Na pintura que se segue ao período mais intencionalmente estruturalista
deste autor, refiro-me às grandes telas tonais de 75-76, fazendo
lembrar na cor, na escala e na profundidade do plano pictural, a série
'Seagram' (1958-9) de Rothko, em exposição na Tate desde 1970, o momento
analítico da primeira fase cede o passo a uma nítida síntese pictorial.
Sem deixar de expor a génese do quadro, nas belíssimas telas
de 75-76, o que Pires Vieira pretende e consegue é a subordinação dos
planos pictórico e pictural ao plano pictorial, ou seja, é a
transformação do sistema da pintura no transportador ideal que conduz a
recepção estética ao recanto normalmente inacessível da imagem mental -
esse lugar onde, segundo os filósofos orientais, se pode chegar à iluminação.
Ao contrário de Rothko, porém, esta imagem mental não pertence a uma
ordem metafísica, mas, quanto muito, a uma ordem hiperfísica. De tal
espaço pictorial irá mais tarde surgir o cenário despolitizado em frente
do qual flutuarão as novas silhuetas da sua pintura; os novos ícones
incrustrados no espaço pictórico à maneira de uma dinâmica linguagem
logotípica, fazendo por vezes lembrar notações muito ampliadas de uma
escrita musical heterodoxa.
Num certo sentido podemos afirmar que a pintura de Pires Vieira regressou do divã estruturalista
ao quadro nostálgico de uma certa regressão pós-moderna. Não retoma,
apesar desse regresso à imagem, o privilégio da janela renascentista
(porque é pura e simplesmente impossível), mas sim a ideia insistente de
uma visão abstracta do mundo; ou melhor, a ideia insistente de uma
sensação abstracta do mundo.
Creio, pessoalmente, que é necessário
fazer a crítica desta ilusão experimental. Mas também creio que foi
preciso chegar até às extremidades mais absolutas do formalismo pictural
e da abstracção pictorial, para que tal crítica se tornasse oportuna.
No caso português, proceder a tal género de crítica implicaria reunir
numa mesma exposição autores como Fernando Lanhas, Jorge Pinheiro,
Ângelo de Sousa, Palolo, Fernando Calhau e Pires Vieira. Pois só deste
modo não perderemos tudo o que entre nós foi feito.
Copyright © 2001/ 2011 by António Cerveira Pinto
Copyright © 2001/ 2011 by António Cerveira Pinto
NOTA — este texto foi escrito expressamente para um catálogo, no ano de 2001. O título foi entretanto modificado para: "A pintura como estrutura".
Sítio web de Pires Vieira