Da arte ao dinheiro
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTODescobri uma coisa interessante num livro excepcional que estou a ler neste momento (Guns, Germs and Steel, de Jared Diamond): os antepassados hominídeos do "homem moderno" andaram por cá há 5 ou mesmo 9 milhões de anos. O "homem moderno", nosso antepassado directo, que poderá ter origem na célebre africana Eva mitocondrial, iniciou a sua longa caminhada há tão só 150 mil anos, e o que do ponto de vista antropológico lhe confere a humanidade plena e o título de Homo sapiens evoluído é —para além de enterrar os mortos e cuidar dos doentes, e fabricar instrumentos normalizados simples ou compostos— o facto de fabricar jóias, i.e. a arte! As primeiras bijouteries que se conhecem são contas feitas com casca de ovo de avestruz, descobertas nas costas Sul e Leste de África. A arte começa pois por ser o resultado privilegiado de uma téchnê, mas ao mesmo tempo —ou pouco tempo depois— transforma-se numa moeda de troca. As contas feitas de casca de ovo de avestruz, de conchas do mar, de carapaça de tartaruga, etc, começando talvez por desempenhar uma função simbólica nos rituais matrimoniais, transformaram-se subsequentemente em objectos-valor, em símbolos e testemunhos de alianças, trocas e comércio — shell-money. Este é aliás o ponto por onde podemos começar a entender a natureza híbrida, simbólica e especulativa da arte, bem como das suas relações com a riqueza, o poder e o amor. Um shot explosivo!
As contas feitas com búzios, encontradas no interior escavado da Caverna de Blombos,
na África do Sul, no início deste século, terão qualquer coisa como 75
mil anos. Desde 2002 que vêm sendo estudadas e são consideradas os mais
antigos testemunhos de objectos manipulados pelo Homo sapiens
com propósitos simbólicos, decorativos e possivelmente económicos (1).
Nesta mesma escavação foi encontrado um pedaço de argila com uma banda
gravada de losangos cuja idade estimada, 70 mil anos, faz dela a mais
antiga representação simbólica que se conhece.
Caverna de Chauvet — pinturas com ~30 mil anos |
Os exemplares mais antigos das famosas pinturas e gravuras europeias de Lascaux e Altamira datam de há cerca de 18 mil anos, enquanto o surpreendente catálogo de pinturas e gravuras de animais mansos e agressivos descobertas em 1994 na Caverna de Chauvet (Sul de França), cujas datações ainda decorrem debaixo das controvérsias habituais, aponta para idades mais longínquas, próximas dos 32 mil anos.
A distância temporal entre, por um lado, as
primeiras representações simbólicas —abstractas e lineares, mas formando
já padrões regulares—, alojadas no mesmo sítio das primeiras formas
decorativas —de mera apropriação/colecção/uso— africanas —, encontradas
na Caverna de Blombos, e, por outro, as figurações fantásticas do final do Paleolítico Superior é muito grande: pelo menos, 10 mil anos!
Os primitivos hominídeos que evoluíram em direcção ao Homo sapiens
terão aparecido à face da Terra há 2,5 ou 2,6 milhões de anos. E é no
longo período que decorreu entre 500 mil e 200 mil anos antes da nossa
era que o Homo sapiens adquiriu, muito lentamente, um conjunto
de habilidades e faculdades mentais capazes de o levar finalmente a
iniciar o domínio das estratégias e técnicas da representação simbólica.
O salto epistemológico e estético, que Jared Diamonds chama Great Leap
Forward, terá ocorrido há uns 50, 60 ou 75 mil anos atrás. Em 1986
investigadores da Universidade da Califórnia defenderam, na sequência de
um longo e amplo estudo de arqueologia genética baseado no rastreio do DNA mitocondrial, que a humanidade actual, toda ela, derivaria, não de uma diversidade de famílias de Homo sapiens, mas de apenas uma, localizada em África, e com cerca de 200 mil anos. A chamada Eva mitocondrial
será assim a provável mãe primordial de todos nós. Toda a arte
conhecida derivará pois, de acordo com esta hipótese científica, das
práticas avançadas e porventura tardias desta linhagem africana, de que
os artefactos encontrados na caverna de Blombos seriam as primeiras
evidências concretas.
Se tudo isto é verdade, podemos talvez reiterar cinco tópicos básicos para a compreensão do fenómeno da arte:
- Os primeiros hominídeos, ramo especialmente dotado derivado de uma espécie de macaco (de onde saíram também os antepassados dos gorilas actuais e os antepassados de duas variantes de chimpanzé), nasceram em África à cerca de 7 milhões de anos (entre 5 e 9 milhões de anos, para ser mais preciso); estão muito longe de serem humanos propriamente ditos — não se lhes conhecendo faculdades de representação simbólica, nem de imaginação criativa;
- No grupo dos proto-humanos —hominídeos que se endireitaram e viram aumentar a sua capacidade craniana— encontram-se os Australopithecus (3,9 milhões de anos), os Homo habilis (1,5 a 2 milhões de anos), e os Homo erectus (1,8 milhões de anos a 300 mil anos); apesar de usarem instrumentos rudimentares de pedra lascada, não são ainda humanos propriamente ditos — não se lhes conhecendo faculdades de representação simbólica, nem de imaginação criativa;
- O chamado "homem moderno" —um Homo sapiens evoluído, com mais de 50 mil anos— caracteriza-se por saber cuidar dos seus doentes, desenvolver rituais funerários, construir ferramentas multi-partes, desenvolver comportamentos de observação sistemática, coleccionar conchas e outros objectos menos duráveis, e ainda por ter sabido especializar capacidades comunicativas e de representação simbólica com resultados evidentes nos vestígios que deixou —nomeadamente as contas de colar de casca de ovo de avestruz (75 000A) e os pedaços de argila gravada encontradas na caverna de Blombos (70 000A) , ou as extraordinárias pinturas da Caverna de Chauvet (32 oooA);
- A capacidade de formular representações simbólicas do entendimento e das percepções, e a imaginação criativa em geral, são traços culturais decisivos que separam o homem inteligente e estético dos seus antepassados proto-humanos —sendo mais provável que uma tal evolução tenha resultado de interacções sociais e novos condicionalismos culturais, do que da lenta metamorfose corporal e cerebral da espécie;
- Os colares de contas de casca de avestruz, de búzios, de pérolas, de sementes, de vidro, de bauxite, etc., acompanham a história da humanidade desde as suas primeira manifestações artísticas conhecidas até aos dias de hoje —desempenhando simultaneamente funções decorativas, simbólicas e propriamente monetárias, por uma espécie de investimento transversal e multi modal de valor, e de capacidade de atracção universal.
O ponto talvez crucial das observações aqui reunidas que o recente leilão espectacular do L’Homme Qui Marche I
de Alberto Giacometti me despertou é essa persistente relação íntima
entre o valor material e o valor simbólico associado aos objectos
decorativos e simbólicos —frutos de uma clara technê (τέχνη)
humana. Não é o trabalho rotineiro acumulado que também existe
concentrado na forma de uma obra de arte (seja esta uma "arte menor",
puramente decorativa, ou efémera, seja esta uma "arte maior", ou "fina",
complexa, polissémica ou alegórica), que potencia o "valor
incalculável", verdadeiramente especulativo — no sentido da estrita
imprevisibilidade — que a mesma pode atingir em contextos agonísticos
especiais, como seja o de um leilão. Há muito mais! Mas o que é? Onde
está e o que é esse atractor —certamente no âmago da definição
teórica e da génese da obra de arte— que assegura simultaneamente a sua
duração e potencia o seu impacto irresistível e universal?
Talvez o
segredo esteja no nascimento de um tempo novo, empregue no
desenvolvimento de uma parte inexplorada do cérebro durante o longo e
duro período em que os hominídeos e proto-humanos deambularam pelo
planeta, caçando porventura em tribo, mas sem ter tempo para desenvolver
relações sociais complexas e estratagemas de sobrevivência mais
sofisticados, à altura da evolução morfológica do corpo (oponibilidade
do polegar, deslocação vertical, especialização da visão, crescimento da
cavidade cerebral) e da mente (com maior disponibilidade para exercitar
algumas das zonas até então adormecidas por uma dedicação exclusiva da
vida às tarefas da sobrevivência e da defesa).
Chamemos a este tempo novo, tempo da representação, tempo da criatividade, tempo do pensamento lateral, tempo da preguiça!
Será
por este carácter excepcional do emprego do tempo que a fama e as
prerrogativas especiais da arte chegaram até onde chegaram? Estarão na
cogitação e distracção criativas as causas difíceis de descrever, mas
nem por isso menos óbvias, e menos eficientes, da excepcionalidade da
arte e do seu valor? Será esta originalidade espacial-temporal que
explica o valor de refúgio espiritual, mas também material da arte? Não
sei, mas gostaria de saber.
Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto
NOTAS
- Contas de conchas de Nassarius gibbosulus encontradas na Grotte des Pigeons (Taforalt Cave, Marrocos) foram entretanto (2007) datadas de há 82 mil anos — PNAS.
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