por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
Joana Vasconcelos—Marylin, Museu Berardo, CCB ©Foto: Filipa Figueira, 2010. |
“Marilyn”, da artista portuguesa Joana Vasconcelos (n. 1971), foi leiloada hoje na casa Christie’s por 505.250 libras (573.964 euros). No leilão de arte do pós-guerra e contemporânea, onde se encontram obras de Gilbert & George, Andy Warhol ou Roy Lichtenstein, a base de licitação da peça, um par de sapatos gigantes realizados com panelas e tampas, era de 100 mil a 150 mil libras (115 mil a 172 mil euros). — Público online.
Lembro-me de ter visto pela primeira vez um dos sapatos de “Marylin”,
feito com tachos inox, numa feira comercial dedicada ao imobiliário e
soluções para arquitectura, jardins e intervenção urbana. O grande
sapato reluzente de ponta alta surgiu-me de chofre, sem passar sequer
pela minha cabeça que haveria por ali escultura, e muito menos uma obra
de Joana Vasconcelos. Mas era do que se tratava. Ali estava,
irresistível a quem rodeava o enorme sapato e por ali ficava alguns
minutos sorrindo e voltando para trás e para a frente, tentando resolver
o puzzle. Parecia um sapato de diamantes. Mas não era. Era, sim, um
objecto gigante feito com mais de uma centena de tachos inox soldados
uns aos outros. Disse para comigo: isto deve ser mais uma partida da
Joana. E era!
Joana Vasconcelos foi durante muito tempo, e porventura ainda será,
uma artista menos considerada entre as vanguardas de sucedâneo que
abundavam na arte portuguesa do final do século passado. Recordo ainda, e
agora posso partilhar o momento publicamente, das pressões que em 1999
sofri para não inclui-la na Bienal da Maia que então comissariei na
ilusão de poder transformar aquele evento suburbano numa realização
periódica com dimensão internacional. Não vou entrar em pormenores, mas
no mínimo, dizia-se que a personagem era insistente e trucidante, e a
obra, no mínimo, Kitsch (como se este último epíteto pudesse então ser um mau presságio, ou uma nota negativa!)
Eu procurava vislumbrar quais os valores mais promissores da jovem
arte portuguesa (e chinesa de Xangai!) naquele final do trágico século
20. Fui abrangente e extensivo, insistindo numa espécie de pedagogia
inclusiva e aberta, num terreno que sabia estar já muito minado por
jogos de poder, de controlo e de exclusão competitiva. A lista de
participantes foi quase exaustiva no que então me pareceram ser
hipóteses em aberto que mereciam conviver numa mesma exposição e dar
lugar à ideia de que existia uma nova geração de artistas dignos da
atenção pública, e da atenção das galerias de arte, dos museus e das
revistas da especialidade, mas também das instituições públicas.
Os anos
90 tiveram pois duas exposições —uma a começar a década, e outra a
fechá-la— onde tive a oportunidade de sugerir um arejamento da percepção
portuguesa do seu potencial plástico. Nomes como Miguel Palma, Carlos
Vidal, João Onofre, João Tabarra, Augusto Alves da Silva, Filipa César,
Alexandre Estrela, Francisco Tropa, Jorge Queiroz, Noé Sendas, Rui
Toscano, Rui Calçada Bastos e Joana Vasconcelos, entre outros e outras,
foram escolhas assumidas para a BM99, quando ainda pesava (ou ainda
pesa) uma espécie de monopólio dos oportunistas Anos 80 sobre os centros
nevrálgicos do poder das artes em Portugal. O tempo deu razão às
escolhas que então fiz e que outros observadores atentos de então também
partilhavam, mais ou menos em surdina!
O que porventura distingue a obra de Joana Vasconcelos, e incomoda
muita gente, é a sua flagrante frontalidade plástica, franqueza feminina
e genuíno espírito do lugar. Tal como Paula Rego, Joana Vasconcelos
sabe lidar com o barro da espécie, sem maternalismo, nem sub-capas finas
de conceptualismo requentado, nem “liricoidismo” literário (a expressão
feliz é de Joaquim Manuel Magalhães) de nenhuma espécie. A bilros o que
é de bilros, e que não se confundam com kilts!
E no entanto nada há de atávico ou provinciano na obra de Joana
Vasconcelos, como obviamente há, por exemplo, na pintura de Graça
Morais. O delírio humorístico e arguto das suas confecções e do seu
bricolage é profundamente urbano e sofisticado naquela acepção
genuinamente Pop que impregna os percursos de Louise Bourgeois, Paula
Rego, Andy Warhol, Jeff Koons, Paul McCarthy e tantos outros e outras.
Há uma truculência genial nos temas, nas escalas, nos materiais e nas
anedotas da sua extravagante casa de bonecas neurasténicas (ver esta reportagem).
E é precisamente esta franqueza narrativa e construtiva que falta em
muitos outros artistas cujo potencial não consegue ultrapassar o limiar
perigoso da verdadeira liberdade criativa. Joana não é, de facto, nem
uma artista epigonal, nem um sucedâneo sem cafeína e politicamente
correcto —”para inglês ver”— da última capa da Artforum (ainda existe?)
Apetece-me voltar a dar um passeio pelo seu trabalho.
Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto
Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto
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