Claude Monet — Impréssion Soleil Levant, 1872 |
Depois da representação
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
Um artigo jocoso —“L’exposition des impressionnistes”— escrito pelo pintor, gravador e dramaturgo Louis Leroy, para o jornal satírico Le Charivari, baptizou e consagrou de uma penada o mais importante movimento estético europeu do último quartel do século 19. A sucessão de incidentes que levara à exposição organizada em 1874 pela Société Anonyme des Peintres, Sculpteurs et Graveurs, no estúdio do fotógrafo Félix Nadar, tinha começado onze anos antes quando Edouard Manet viu o Salón de Paris de 1863 recusar o seu escandaloso Le déjeuner sur l’herbe. Esta censura académica levaria o imperador Napoleão III a decretar a realização de um “Salon des Refusés”, para que fosse o público a julgar do mérito das criações artísticas dos “recusados”. De facto, em 1864 Manet viria a expor o primeiro de uma série de quadros escandalosos para aquela época. Há três elementos nesta história que gostaria de explorar rapidamente, tendo em conta que escrevo a propósito de uma reunião de artistas e profissionais imersos em tecnologias de realismo virtual de origem computacional. Curiosamente, Manet declinou participar na que viria a ser consagrada primeira exposição de pintores impressionistas. Por sua vez, a virulenta crítica que Louis Leroy dirige contra as pinturas da exposição refere expressamente a falta de definição que as caracteriza:
“Impressão, estava certo dela. Também dizia a mim mesmo, já que estou impressionado, deve haver ali impressão — e que liberdade, que facilidade de ofício! Um desenho preliminar para um papel de parede tem mais definição que esta vista de mar.”
Finalmente, a exposição
organizada por Pissarro, Monet, Sisley, Degas, Renoir, Cézanne,
Guillaumin e Berthe Morisot (única mulher pintora pertencente a este
grupo), teve lugar no estúdio de Nadar, um dos mais célebres e
inventivos pioneiros da fotografia que então descolava da sua primeira
fase experimental (Niépce, 1822, 1825, 1826; Niépce & Daguerre
1825-1829; Fox Talbot, 1834; Daguerre, 1839.)
Nicéphore Niépce, heliografia (1825) Wikipedia |
Por estas alturas eram já frequentes os retratos de pose, as paisagens e vistas de cidade, bem como as imagens de objectos e de máquinas realizados de forma mecânica, isto é, por acção directa da luz natural sobre materiais foto-sensíveis. Estas superfícies emulsionadas quimicamente tinham e têm a propriedade de reter e fixar em imagem uma dada exposição aos fotões reflectidos pelos objectos iluminados. O que não reflecte a luz, porque a deixa passar, ou porque tem uma cor absorvente, é preto; e o que reflecte a luz em todo o seu espectro visível é branco, havendo entre estes dois extremos uma longa gama de cinzentos. Os contornos são, na realidade, transições bruscas de estado, forma, cor e luminosidade. A linha, de facto, não existe. Os grãos, sim — como bem viram então os pioneiros da fotografia ao perceber a física das partículas quimicamente emulsionadas, e depois sensibilizadas.
Alguns pintores
impressionistas, de Monet e Pissarro, a Seurat, entenderam precisamente
este facto extraordinariamente importante da percepção. Os pontos de
cores primárias agregam-se em manchas cujas transições de cor e
intensidade percebemos como contornos, volumes e linhas — i.e. como
imagens construídas ao longo de um complexo, interactivo e ultra-rápido
processo de impressão sensorial e de trabalho emotivo-cerebral.
Manet
(1832-1883) declinou o convite dos pintores rebeldes mais jovens, como
Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919), ou Cézanne (1839-1906). Porquê?
Apenas por ser de outra geração? Mas Nadar (1820-1910), que acolheu os
futuros “impressionistas” no seu estúdio de fotografia, tinha uma década
mais do que Manet e era uma vintena de anos mas velho do que Monet! A
explicação será certamente outra. A minha interpretação é esta: por uma
conjuntura extraordinária, creio que os comportamentos de Manet, de
Nadar, e dos artistas da Société Anonyme, traduzem os três movimentos
fundadores da cultura moderna da segunda metade do século 19 e de todo o
século 20.
Nadar — Sarah Bernhardt (era como aqui a vemos...) |
Manet representa a provocação e a urbanidade do novo programa realista anunciado por Goya (1746-1828), Géricault (1791-1824) e Courbet (1819-1877). Nadar protagoniza a emergência surpreendente do realismo tecnológico que, apesar das inúmeras falsificações, manipulações e agora efeitos especiais, continua a expandir-se como uma espécie de especulação absolutamente verosímil da realidade — “ça a été!” (Barthes, 1980). Os Impressionistas, por fim, abriram as portas a uma interminável análise formal da prática artística, caminhando e ajudando os seus sucessores a mover-se em direcção à abstracção, aceitando mais tarde acolher as tradições iconoclastas oriundas do Protestantismo e até do Budismo Zen.
Curiosamente, estamos na
presença de três tipologias distintas de realismo: o realismo crítico, o
realismo tecnológico e o realismo analítico. Enquanto a primeira
permite integrar numa narrativa essencialmente política as aquisições
tecnológicas e estéticas dos processos de figuração, representação e
especulação, e a segunda inova sem compromisso, numa espécie de
crescendo noemático dos aparelhos de representação (the determinable x),
finalmente a terceira instaurou na arte uma disciplina desconstrutiva
que tem na Fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) a sua possível
justificação filosófica e estímulo.
Se elegermos Avatar, o filme
realizado pelo escritor e artista-inventor James Cameron, para ilustrar
um dos exemplos mais recentes de realismo tecnológico caímos, porém, num
paradoxo: — a medida extrema de realismo conseguido através de técnicas
de filmagem digital estereoscópica (Reality Camera System 1) e de
sistemas de realidade aumentada que permitem ver instantaneamente o
resultado da computação gráfica de processos de captura dos movimentos
reais da acção cinematográfica (recorrendo à “virtual camera” do
realizador), serve afinal para produzir um universo narrativo de pura
fantasia e propaganda.
Precisamos, pois, para afinar a nossa
presunção teórica, de recorrer a duas novas causas do paradigma moderno e
contemporâneo da manipulação dos processos de comunicação e de
representação simbólica. A primeira chama-se ilustração, caricatura,
comic, anime, Ukiyo-e. E a segunda, propaganda, relações públicas,
sedução e jogos de linguagem.
Uma das artes importantes do
realismo crítico dos séculos 18 e 19 é a ilustração, praticada sobretudo
através das técnicas de gravura por autores como Hogarth (1697-1764),
Goya (1746-1828), Daumier (1808-1879), John Tenniel (1820-1914) e
Toulouse-Lautrec (1864-1901), entre outros. A explosão dos meios de
reprodução mecânica da escrita e da imagem, de que a litografia (Alois
Senefelder, 1796) e a fotogravura (Niépce, Daguerre, Fox Talbot) foram
poderosos instrumentos, associada à verdadeira revolução dos sistemas de
transporte então em curso, tornou possível o aparecimento de um
fenómeno novo: a proliferação e popularização dos meios de comunicação e
arte.
A emergência de uma sociedade urbana de massas pedia um
novo paradigma de comunicação, novas formas de produção artística, e uma
modificação radical da natureza da recepção estética. Foi isto que
aconteceu, ainda que sob a forma de uma verdadeira síntese crescente
entre mercadoria e prazer. A narrativa libertária da Revolução Francesa,
associada ao pragmatismo optimista e comercial da Revolução Industrial,
deslocaram o centro da comunicação e da figuração simbólicas, das
catedrais, dos adros da igrejas, e dos salões imperiais, para a cidade da multitude, da velocidade e da luz. Um novo realismo Pop iria
inevitavelmente surgir de tamanha agitação cultural.
Carl Jung (1875-1961), Sigmund Freud (1856-1939), e mais tarde o seu sobrinho Edward Bernays (1891-1995), são três de uma plêiade de pioneiros que elevaram o conhecimento do comportamento dos indivíduos, e sobretudo das massas, até alturas inimagináveis pelos feiticeiros que até à data guiavam as consciências de crentes e súbditos. Adam Curtis assinala no seu premiado documentário para a BBC, The Century of the Self (2002), a importância de Bernays, autor do hoje pouco conhecido livro Propaganda (1928), na fundação do actual e omnipresente sistema de Relações Públicas.
Carl Jung (1875-1961), Sigmund Freud (1856-1939), e mais tarde o seu sobrinho Edward Bernays (1891-1995), são três de uma plêiade de pioneiros que elevaram o conhecimento do comportamento dos indivíduos, e sobretudo das massas, até alturas inimagináveis pelos feiticeiros que até à data guiavam as consciências de crentes e súbditos. Adam Curtis assinala no seu premiado documentário para a BBC, The Century of the Self (2002), a importância de Bernays, autor do hoje pouco conhecido livro Propaganda (1928), na fundação do actual e omnipresente sistema de Relações Públicas.
“If we understand the mechanism and motives of the group mind, is it not possible to control and regiment the masses according to our will without their knowing about it? The recent practice of propaganda has proved that it is possible, at least up to a certain point and within certain limits.” — (Edward L. Bernays, Propaganda, 1928).
“The engineering of consent is the very essence of the democratic process, the freedom to persuade and suggest” – (Edward L. Bernays, The Engineering of Consent, 1947).
Parece, pois, que há um realismo
muito actual que não esteve propriamente presente no baptismo do
Impressionismo! À falta de melhor termo, chamemos-lhe realismo
mediático. E porquê realismo? E não, pura e simplesmente, propaganda e
manipulação?
Se pensarmos um pouco na publicidade actual, ou pelo
menos na mais criativa (de que Postman Returns, idealizado por
Mischa Rozema, é um bom exemplo), que temos de comum? Eu diria que
temos, em primeiro lugar, uma boa história, ou uma boa anedota, depois,
imagens sedutoras, ritmo musical, e finalmente uma quase ordem, na forma
de um convite tentador ou chantagem simpática. Mas o mais importante é
que a comunicação e a forma sedutora aqui tenham um objectivo preciso:
conduzir-nos à realidade! Ou pelo menos a uma parte efectiva e imediata
da realidade que nos circunda.
No labirinto cada vez mais denso e
complexo da cidade a publicidade é um vector de comunicação, de
informação e de posicionamento social e cultural. Porque a obsolescência
urbana e pós-industrial é grande, e a memória pós-moderna demasiado
volátil, o realismo, a clareza, o ritmo e o humor —que é simultaneamente
uma expressão de realismo crítico e uma mnemónica—, são cruciais para
uma forma eficaz de comunicação comercial. O consumidor precisa de ajuda
na torrente de objectos materiais e virtuais que afluem às suas
possibilidades de escolha. É nesta dialéctica que a inteligência
comunicacional se torna crítica, e precisa de um tipo de criatividade
especial, léxica e disléxica ao mesmo tempo, onde a qualia (e já não a
aura) manifeste a sua indispensável presença.
A propaganda comercial e noticiosa é, para efeito desta análise, uma e a mesma realidade, uma realidade mediática.
R. Crumb [in Wmagazine] |
Se olharmos enfim para o realismo mundano que vai de William Hogarth (1697-1764) a Robert Crumb (1943-), passando pela estampa japonesa de Hokusai e pela grande influência que estas chamadas imagens do mundo flutuante (Ukiyo-e) tiveram na Europa do século 19, e continuaram a ter durante todo o século 20, quer na Europa, quer nos Estados Unidos, tendo influenciado decisivamente a emergência das histórias aos quadradinhos, das tiras ilustradas publicadas na imprensa, e as edições de autor e revistas de comic, e continuando hoje a influenciar movimentos de estética urbana tão fortes e globais como o anime e a manga, não poderemos deixar de registar aqui um movimento subterrâneo de fundo, poderoso, sem as preocupações educadas do realismo crítico propriamente dito, mas nem por isso menos perspicaz e contundente. Digamos que aquilo que distingue o realismo mundano do realismo crítico educado é o exacerbado sentido de humor, culto do escárnio e erotismo provocador do primeiro, por contraposição ao jogo de sombras palaciano da realismo crítico. Outra distinção importante deriva dos públicos que um e outro realismo convoca.
O público de Manet nunca foi nem é o mesmo que
devorou e continua a devorar as fantasias pesadas de Crumb, embora
partilhe certamente o gosto pelas estampas de Hokusai. A produção
discreta para uma aristocracia de apreciadores de arte não se confunde
com a produção em massa dirigida à multitude urbana. Este apontamento,
orientado para a tentativa de isolar o cerne da imaginação digital
electrónica actual, necessitaria de mais tempo e detalhe para evitar uma
leitura demasiado à letra das ideias até agora expressas. Por exemplo,
como explicar Walt Disney —ou Shrek, Hulk, T-1000, ou Avatar— à luz das
diferentes encarnações do realismo descritas? Onde ficam nesta divagação
os Teletubbies?
A imaginação digital electrónica actual
encontra-se algures no ponto de contacto intermitente entre o realismo
tecnológico, o realismo mediático e o realismo mundano. Os esqueletos,
as couraças duras, e a cada vez mais complexa e híbrida massa cinzenta
do mundo digital, constituem uma espécie de técne (τέχνη) mutante, cujas
aplicações exigem cada vez mais dedicação e aprendizagem por parte dos
humanos.
Do realismo inicial, cujo aperfeiçoamento permite já ao
mundo digital fabricar ilusões perfeitas, caminha-se agora para uma
espécie de realidade aumentada, ou artificialidade imanente, para cuja
génese e desenvolvimento a intervenção do colectivo de deuses
cognitivos, produtores, programadores e designers que protagoniza o
processo criativo tenderá a pulverizar-se numa rede cada vez mais fina e
cheia de nós e níveis de complexidade e graus diversificados de
intervenção, de onde a nova vida artificial começará um dia destes a
desenvolver-se. Entretanto, permanece outro paradoxo: quanto mais
rápidos são os processadores, mais tempo e dedicação são exigidos a quem
desencadeia os processos criativos. A finalidade e o desejo
encontram-se sempre um passo adiante!
[Escrito em 3 de Abril de 2010; publicado em 4 de Junho de 2010 por Sines Digital]
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