por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
Li recentemente uma notícia sobre a vontade do antigo ministro da cultura, Manuel Maria Carrilho (MMC), de voltar às lides. O ar de Paris fez-lhe bem! Ao contrário dos detractores da sua passagem pela política, eu alinho com muitos funcionários públicos modestos que por esse país fora o saúdam como o único responsável governamental que em muitas décadas assumiu sem receio a vontade de envolver o Estado na protecção e estímulo da actividade cultural. Ao que parece está com vontade de regressar, começando desde já por erguer de novo a bandeira do 1% do orçamento de Estado para o sector cultural. Seja bem-vindo. Mas eu vou mais longe: são precisos 3%!
Para este ano [2010], o Ministério da Cultura contempla uma despesa de 212,6
milhões de euros (M€), para uma despesa global da administração central
de 54.381,6 M€ — ou seja, menos de metade dos famigerados 1%
recomendados por MMC (0,39%). Pois bem, eu proponho que sejam retirados
ao conjunto dos demais ministérios, de forma proporcional, os 1.418,848
M€ que faltariam para o orçamento do ministério da cultura atingir em
2009 os 3% do orçamento da administração central que proponho para as
artes em geral.
Porquê e para quê, perguntar-se-à. Respondo assim: para colocar a
cultura onde ela terá que passar a estar nas sociedades
pós-contemporâneas, fazendo o que nenhuma outra instância governamental
está vocacionada e muito menos preparada para fazer, ou seja, responder
de forma criativa às sociedades tecnológicas em formação, nas quais o
“fim do trabalho” (Jeremy Rifkin) e a emergência do chamado “terceiro
sector” (2) são evidências, que a não serem convenientemente tratadas
provocarão uma sucessão de colapsos sociais precedidos por crises
financeiras e económicas de dimensões idênticas ou ainda mais dramáticas
e prolongadas do que a que desde Fevereiro de 2007 começou por afligir o
sistema financeiro, a economia e a sociedade dos Estados Unidos,
estendendo-se depois ao resto do planeta.
Os programas de “novas oportunidades” e suposta formação profissional
não passam de medidas paliativas ilusórias que em nada modificarão a
tendência para a destruição estrutural do emprego assalariado induzida
pela lógica intrínseca da produção tecnologicamente assistida em todos
os seus segmentos: desde a extracção das matérias primas, à respectiva
transformação, distribuição, promoção e venda.
O mesmo sucede nas políticas de subsídio à crescente e irrecuperável
massa de desempregados atirados para o desespero pelas tendências cada
vez mais acentuadas para a automação e desmaterialização dos processos
produtivos, de gestão e da própria interacção social.
Ao contrário do que muitos crêem, a deslocação do capital e do
trabalho para os países emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China, etc.),
em busca, num primeiro momento, da proximidade aos recursos naturais e
aos baixos salários, tem um impacto meramente conjuntural na mudança dos
termos de troca à escala global. Na China, a crise financeira e
económica mundial irá provocar em 2009 o despedimento e migrações no
interior do seu vasto território de mais de 20 milhões de pessoas (3). A
ONU, por sua vez, prevê que o desemprego possa chegar aos 230 milhões
de pessoas em 2010!
Ora os governos continuam a responder a esta emergência como se a
mesma fosse episódica e passageira, em vez de sistémica e porventura
irreversível. Os instrumentos postos à disposição, por exemplo, do nosso
ministério do trabalho e da solidariedade social, são completamente
inadequados à natureza da crise em curso. Gerir pensões e tomar algumas
medidas avulsas são caminhos para responder a problemas de uma época que
já não existe.
A resposta à crise sistémica em curso terá forçosamente que ser uma
resposta cultural. Quer dizer, uma resposta que convoque o melhor das
energias criativas da comunidade para, em primeiro lugar, perceber a
verdadeira causa das coisas, e depois, colocar em marcha uma verdadeira
coligação de vontades, conhecimentos e energias criativas capaz de
atalhar estruturalmente os múltiplos colapsos do sistema, avançando
simultaneamente com modelos experimentais de interacção e cooperação
social que possam ajudar a encontrar o paradigma social de que as
sociedades cognitivas e tecnológicas em formação precisam para
continuarem a permanecer humanas e civilizadas. Uma sociedade de velhos e
alguns jovens estéreis guiada por “robots” e nano-tecnologias ao
serviço de uma qualquer decrépita e corrupta aristocracia atulhada de
dívidas — ainda que tais dívidas pareçam riqueza acumulada — não é o que
todos queremos, certamente.
Embora os sistemas educativos sejam um desastre na esmagadora maioria
dos países, e estejam aliás enredados numa cornucópia perversa de
reformas cuja principal finalidade já é reproduzir com os menores custos
possíveis um descomunal exército de gente desempregada ou que jamais
encontrará emprego estável, boa parte das mudanças que no futuro
permitirão adaptar as sociedades humanas à radicalização da era
tecnológica, muitíssimo mais distributiva do que a actual, passará por
uma verdadeira revolução educativa. Só que esta revolução precisa de um
campo experimental prévio, onde seja possível montar um acelerador de
criatividade social. É aqui que eu vejo a nova importância das práticas
culturais entendidas em sentido lato, i.e. abrangendo as ciências, as
filosofias e as artes, naquilo que seria a re-fundação da veterana
“techne”. Ora, por incrível que pareça, são as vanguardas artísticas, da
reflexão filosófica e da investigação científica quem melhor pode
confluir para esta tempestade mental, de onde sairão, esperemos que a
tempo, visões inovadoras e possíveis para esse mundo por vir a que chamo
pós-contemporâneo.
Mas para que tudo isto ganhe momento seria da máxima importância
fazer perceber aos políticos a necessidade de aceitarem reduzir o seu
grau de omnipotência decisória, cujos resultados têm sido manifestamente
medíocres. Pedimos-lhes um pouco de humildade neste transe difícil da
civilização!
Que faria eu, enfim, aos 3% do orçamento da administração central
atribuídos à Cultura numa próxima legislatura? Pois bem, faria isto: o
primeiro 1% iria para a manutenção e divulgação do património cultural,
abrangendo o longo período que vai desde os testemunhos originários da
espécie humana até ao fim do século 20; o segundo 1% iria para a criação
de um grande acelerador de partículas criativas multi-disciplinar,
poli-nuclear, desburocratizado, autónomo e responsável, tendo por
finalidade estudar e propor à sociedade modelos experimentais de
convivência e simbiose criativa pós-laboral (considerando que o trabalho
assalariado tenderá a desaparecer); e o terceiro 1%, finalmente, iria
para o desenvolvimento de programas de responsabilidade social activa,
orientados para o estabelecimento de parcerias entre os sectores
público, privado e comunitário.
Por menos que isto, não vamos lá.
Copyright © 2009 by António Cerveira Pinto
NOTAS
- [*] O título original deste texto é “Cultura e Terceiro Sector nas sociedades pós-contemporâneas”, foi escrito para a edição de Maio de 2009 da revista L+Arte, e actualizado em 30-05-2009.
- “Terceiro sector é uma terminologia sociológica que dá
significado a todas as iniciativas privadas de utilidade pública com
origem na sociedade civil. A palavra é uma tradução de Third Sector, um
vocábulo muito utilizado nos Estados Unidos para definir as diversas
organizações sem vínculos directos com o Primeiro sector (Público, o
Estado) e o Segundo sector (Privado, o Mercado).
Apesar de várias definições encontradas sobre o Terceiro Setor, existe uma definição que é amplamente utilizada como referência, inclusive por organizações multilaterais e governos. Proposta em 1992, por Salamon & Anheier, trata-se de uma definição “estrutural/operacional”, composta por cinco atributos estruturais ou operacionais que distinguem as organizações do Terceiro Sector de outros tipos de instituições sociais. São eles:- Formalmente constituídas: alguma forma de institucionalização, legal ou não, com um nível de formalização de regras e procedimentos, para assegurar a sua permanência por um período mínimo de tempo.
- Estruturas básicas não governamentais, são privadas, ou seja, não são ligadas institucionalmente a governos.
- Gestão própria: realizam sua própria gestão, não sendo controladas externamente.
- Sem fins lucrativos: a geração de lucros ou excedentes financeiros deve ser reinvestida integralmente na organização. Estas entidades não podem distribuir dividendos de lucros aos seus dirigentes.
- Trabalho voluntário: possuem em algum grau mão-de-obra voluntária, ou
seja, não remunerada, ou o uso voluntário de equipamentos, como a
computação voluntária.”
— in Wikipedia <http://pt.wikipedia.org/wiki/Terceiro_setor>
3 — 20 Million Laid-off Migrant Workers May Send China’s Unemployment
Rate to 10%. February 06, 2009 — in China Stakes.